Histórias de Moradores do Tremembé

Esta página em parceria com o Museu da Pessoa é dedicada a compartilhar histórias e depoimentos dos Moradores.

História da Moradora: Raimunda Cruz do Nascimento
Local: São Paulo
Publicado em: 19/12/2014

 



História: Não tenho vergonha da minha história


Sinopse:

D. Raimundinha é descendente dos povos Tremembé, mas também se sente Tapeba e é reconhecida como uma liderança desse Povo. Ela conta do trabalho desde pequena na Pedreira, onde trabalhava com a mãe e outras pessoas da etnia Tapeba. Narra o cotidiano de dificuldades que viveu na infância, com muitos detalhes também da natureza da época; o processo de auto-identificação Tapeba com a ajuda da arquidiocese de Fortaleza com Dom Aloísio Lorscheider e o reconhecimento oficial pelo Estado; e os casos de cura realizado por ela, papel atribuído e reconhecido por sua função de curandeira na comunidade. Comenta sobre os chás, o uso de determinadas ervas pós-parto , formas de quebrar o mau olhado, etc. Entrevista muito rica, seja pela forma como narra, seja pelo conteúdo de um saber prático e simbólico.

História

Meu nome é Raimunda Cruz do Nascimento. Nasci no Croatá, cheguei aqui pequena e me sinto uma Tapeba, sou uma Tapeba. Apesar de eu ser descendente dos Tremembé. Nasci em 18 de março de 47. Minha mãe Maria Augusta Souza da Cruz e José Ferreira da Cruz, meu pai que me criou, porque o meu pai verdadeiro mesmo saiu e deixou a minha mãe com cinco filhos pra criar, tudo pequenininho. E a mais velha era eu, que tinha sete anos, os outros quatro pequenininhos, tinha um que sentava. E de lá pra cá a minha vida de criança passou a ser adulto.

Minha mãe saía pra trabalhar e eu ficava em casa. Eu era a mais velha. A partir dos meus oito anos eu comecei a acompanhar ela pra trabalhar em pedra, essa pedreira aí que hoje é cheia d’água. Ela quebrava pedra. E a gente juntava aquelas pedrinhas finas, as metralhas que a gente chamava, pra quebrar concreto. Minha mãe era quebradeira de concreto. Era medido por lata. E tinha um roçado que ela plantava milho, feijão. Só que o roçado que ela plantava era pequenininho porque ela não tinha condições de plantar um roçado grande. Mas como ela era uma pessoa que tinha criado duas filhas dela só apanhando arroz e colhia outras plantas, minha avó toda vida era uma pessoa que plantava. A vida da gente é uma vida muito sacrifiçosa.

Quando eu tomei conta da minha casa, a minha casa era conhecida como Casa 22, que eram 22 pessoas que moravam na casa, antes de eu vir pra essa casa aqui. Vinte e duas pessoas.

A casa que a gente morava quando eu era pequena era aqui no centro da mata, uma casinha de taipa, pequena, e nós passemo muito tempo lá. E o posseiro da terra foi lá onde nós tava, porque eles tinham se apossado dessa área aqui, que era dos antepassados e que passou pra mão dos posseiro. O velho foi lá na casa onde nós morava e a casa tava torta. Ele perguntou à minha mãe: “Quem botou vocês aqui?”, e ela disse: “Foi seu Alfredo Miranda”. Ele disse: “Botaram vocês pra morar ou pra morrer debaixo dessa casa? Porque essa casa está caindo, escore ela enquanto ela não cai. E quando desocupar uma casa na beira da lagoa vocês passem pra lá, ordem minha”, que era o posseiro dono da casa. Mudemo pra beira da lagoa.

Eu não ia estudar pelo seguinte, eu não tinha tempo pra estudar. Minha mãe não tinha com que comprar material escolar pra botar os outros na escola, porque o que a gente ganhava era tão pouco, se tirasse pra comprar material didático pra ir pra escola não tinha o que dar de comer às crianças.

Quando não tinha beiju a gente tomava café da manhã era com farinha mesmo. Ela fazia o chá de cidreira, botava um pózinho de farinha dentro e mexia, aí ficava aquele mingauzinho fino de cidreira E ela botava uma canequinha pra cara um. E assim a gente levava a nossa vida.

Eu fui uma criança que brinquei de noite quando dava tempo. Quando minha mãe saía comigo de noite, às vezes, ela botava os meninos pra dormir, aí dizia: “Minha filha, vamos lá na casa da dona Chiquinha?”. Nós ia lá na casa dela e lá tinha um menino e uma menina, aí nós brincava de noite. Às vezes, eu levava minhas bonecas de sabugo, que as boneca, primeiro, a gente fazia de sabugo. Às vezes, minha mãe costurava um pedacinho de pano e eu enchia com folha, aí fazia uma boneca. Uma boneca era de pano (riso). Ela enrolava uma cabeça, a bichinha tão feinha, mas era boneca, ela fazia de qualquer maneira aquilo ali pra gente brincar. E aí foi isso, a minha criancice foi mais de trabalhar. Agora tem uma história da minha vida que eu sinto falta.

De primeiro tinha umas ameixeiras, onde ficava um barranco lá em cima, juntava água debaixo. Hoje em dia esse barranco não existe mais. Porque não existe mais a mata, não existe mais as ameixeiras, o pessoal cavou, ficou só a lagoinha das orelhas de burro, mas bem pequenininha. O resto encheu tudo de orelha de burro, é um pauzinho que nasce, que tem as oreinhas assim, pra cima, direitinho umas oreias. Aí a gente apelidou ela por Lagoinha das Orelhas de Burro. Mas de primeiro tinha tanto pássaro aqui! Muito passarinho, uma mata grossa. E a gente ia pra lá. Era como se a gente ali de baixo não desse, não corresse perigo pra eles, como na verdade não corria, não, que ninguém tinha coragem de sair matando passarinho E a gente brincava lá na sombra, era uma sombra, cantarola de pássaro que estralava. E, às vezes, eu fico lembrando daquilo ali. Muitas coisas (suspiro, emocionada), que se foi na criancice da gente.

Do que a gente sente falta, essa é uma. Da falta da participação da gente com a natureza, que hoje, como você vê, mata, ninguém tem mata. Animal você só vê cantar só assim, preso na gaiola. Antigamente passava uma multidão de periquito aí, hoje a gente vê um periquitinho assim, preso nas gaiolas. Essas poucas coisas boas que a gente tinha e não tem mais. Hoje em dia a gente ficou de um jeito que a gente não tinha mais onde plantar, e quando uma pessoa plantava perdia a metade das coisas que plantava pro posseiro. Cada tempo que passava as coisas ficavam mais difíceis, que eles já queriam renda até da mandioca. Hoje é diferente. Nós melhoramos muito de vida, começou a nossa luta, apesar de estar com 30 anos que a gente tá nessa luta, três décadas nessa luta, atrás da demarcação da nossa terra e até hoje ainda não saiu. Muitas pessoas se juntavam fazendo as reuniões, embaixo dos pés de pau. Quando foi em 83, no dia seis de fevereiro de 83, foi que se tornaram as reuniões. Mas vamos voltar à história de minha vida. Quando eu cresci, com 16 anos, eu tomei conta da minha casa, do meu marido.

Tinha umas casinhas lá, elas moravam lá e eu fui pra esse aniversário, ela me chamou, eu fui. Aí lá eu conheci ele, nesse aniversário. Comecemo a namorar e me juntei com ele porque eu não tinha idade de casar, nesse tempo o pessoal era muito rígido, criança não podia casar, porque com 16 anos a gente ainda era criança e não tinha como nós casar. Nós juntemos, eu engravidei da minha primeira menina, se juntamos em 61. Em 61 eu tomei conta da minha casa, em 62 minha filha nasceu.

Quando eu me casei, eu tomava conta da minha mãe. Aí já virou tudo ao contrário, no lugar de eu ir ajudar ela, trabalhar pra sobreviver, a minha outra irmã, que é mais nova do que eu, foi trabalhar em casa de família pra me dar de vestir, de calçar, pra eu não sair de casa pra cuidar da nossa mãe. Ela não era uma mulher doente, ela era uma mulher sadia, mas ela achava que o trabalho de casa já tava muito cansativo pra ela, aí ela preferia ir trabalhar e eu ficar em casa cuidando da minha mãe.

Meu irmão mais velho era furador de fogo, furava fogo e o outro quebrava as pedras. Com 17 anos ele já trabalhava na pedreira e com 18 ele foi embora pra Manaus. Pra trabalhar numa firma conhecida como Queiroz Galvão. Perdemos contato com ele por 13 anos. Minha mãe já muito doente, a gente já tinha apelado pra tudo pra encontrar ele, ninguém encontrava. Aí, nós pedimos a ajuda pro Gugu pra encontrar ele. Aí ele encontrou ele no Rio de Janeiro. Quando foi no mesmo mês ele veio em casa, quando a nossa mãe já tava doente.

Eu tive 16 filhos. Quando passava por nove mês de grávida a gente tomava gergelim, bastante gergelim com hortelã. A cachimbeira que pegava meus filhos, ela fumava cachimbo. Teve criança minha que eu tive deitada, teve criança minha que eu tive sentada em um banquinho que a gente tinha, mas eu tive minhas crianças mais deitada do que em pé. E também tive filho sozinha.

Depois que tinha filho a gente tomava chá de ameixa com óleo de ricino, pra que se tivesse ficado algum resto, alguma coisa, sair e não ficar dentro da gente. O chá de aroeira gente tanto usava pra se lavar, tomar meu banho, como usava pra beber pra modo de limpar por dentro.

A gente banhava [a criança quando nascia] no alguidar de barro, coisa dos mais velhos que a gente tem que banhar em alguidar de barro. Porque a gente vem do barro, diz eles. Era de acordo com o que a gente quisesse que os filhos da gente fosse, a gente botava uma casquinha de pau dentro. Eu sempre gostei de botar a casca da jurema dentro da água, que era pra eles terem o poder da cura. Apesar que tem um hoje, eu nunca gostei, assim, de dizer assim: “Eu sou uma curandeira”. Eu rezo contra espinhela caída, eu rezo de quebrante, eu sei tomar sangue de palavra, mas eu sempre acho que quem pode tudo é Deus.

Antigamente o nosso povo mais velho, eles tinham muito medo de falar. Não dizia que era índio, que na verdade Caucaia era uma tribo indígena. Foi tirado o nosso povo de lá todinho, os nossos mais velhos, e botaram pra cá, pra uma aldeia Nossa Senhora dos Prazeres, como era chamada. Os posseios se apossaram e tomaram tudinho do índio. Muitos estão na beira do rio Ceará, ou na beira do Trilho ali, e daí por diante, era tudo espalhado assim. Ficou tudo sem as casinhas deles. Eles se apossaram da aldeia Nossa Senhora dos Prazeres. Aí ficou ruim pra nós. Sabia que os posseiros eram quem tinham se apossado daqui. E começou-se a fazer reuniões, ainda na era de 70.

F
oi juntando mais e foi juntando. Já tinha gente daqui da Lagoa, gente lá da Ponte, já tinha gente do Trilho, ia se juntando e conversando, só ficava ali, as conversas não saíam dali. E saía assim, pra ir atrás de ajuda, de alguma coisa, nesse tempo o pessoal era muito necessitado mesmo, ainda hoje tem gente que ainda é, e vivia assim. Quando foi, dom Aloísio Lorscheider começou a descobrir os índios. Foi no dia seis de fevereiro de 83 a primeira reunião com Dom Aloísio Lorscheider. De lá pra cá foi aquela, quando foi um dia o Dourado perguntou se não tinha como tirar essas reuniões debaixo dos paus pra botar pro mundo. Disseram que sim, tinha, estavam esperando que alguém fizesse isso, pedisse pra fazer isso e não eles terem a iniciativa de fazer. Encheram os carros tudo de gente, foi tudo pra Igreja da Sé em Fortaleza. A Igreja da Sé de lado assim tinha uns quartos com muito computador, muita coisa. Aí foram tudo, botaram tudo os computador, as coisas dos índios. E daí por diante pronto, daí as nossas reuniões começou a ter ata, aí formaram as Associação dos Índios Tapeba de Caucaia. Comecei a crescer dando aula debaixo de um pé de pau, a ensinar, e eu comecei a me envolver com a escola.

Nós começamo a se organizar. Era muito, muito, muito difícil a vida. Quando eu entrei na luta também pela demarcação das terras. E a gente andava, a gente andava, a gente viajava e a gente passava fome nos cantos porque ninguém tinha ajuda de ninguém pra viajar. Quando a gente arranjava era as passagens. Aí vamos comer banana com casca e tudo pra não morrer de fome nos caminhos. Pra Brasília e pra onde fosse que fosse. Eu fui em Brasília, fui pra São Paulo, já fui pra Recife, Pernambuco, eu já viajei pra muitos cantos. Tudo era sobre demarcação das terras. E foi assim que a gente foi se juntando. Fizemos, formemo associação também do índios Tapeba de Caucaia. Aí foi melhorando mais porque a gente já foi buscando ajuda, depois fomos correr atrás de uma Funai pra cá, aí veio o posto da Funai. E depois veio essa, que veio pra aí. E depois fomos lutar pela saúde, depois por uma escola índigena e de lá pra cá a gente só luta, luta, luta, que nós têm tudo é com muita luta, com muito sacríficio, devagarzinho, mas estamos indo buscar.

Teve hora que eu quase desabei [ao contar sua história]. Teve hora que eu fiquei feliz de estar passando a minha história, que mais tarde ela sirva pra alguma coisa. Foi assim que eu me senti na minha história. Você sabe a gente se lembrar de coisas que aconteceu, tem muita gente que diz assim: “Eu não gosto de me lembrar do que eu passei, eu gosto de me lembrar pra frente”. Eu digo: “Pois eu acho bom você crescer e olhar pra trás e não se envergonhar do que fez atrás. É muito bom que você pense nisso, andar de cabeça erguida, sem se envergonhar de olhar pra trás”. Porque tem muitas vezes que pra ser o que você é, muitas vezes pus em cima de muita gente, é capaz de roubar, é capaz de matar, isso é muito triste.

No meu conhecimento de vida eu fui uma pessoa que lutei muito, batalhei muito, passei muita necessidade, mas não tenho vergonha de contar a história da minha vida pra ninguém. Eu não me envergonho você sabe por quê? Porque no tempo que a gente não podia comer carne, não é vergonha, é a maneira de você viver, viver de pesca que nem eu cansei de pescar pra fazer o tempero da minha casa, não é trabalhar pra ajudar a minha mãe a criar meus irmãos. Não é uma história de vida que eu espio pra trás eu me envergonho do que eu passei. Eu não me envergonho do que eu passei. E estou aqui pra orientar meus filhos, meus netos, aqueles que me procuram, e sempre dizer a eles que eles sempre devem andar de cabeça erguida, cansei de dizer aos meus filhos: “Meus filhos, ocês andem sempre por um caminho que ocês podem até tropeçar, mas se ocês cair tem alguém pra lhe dar a mão pra lhe levantar. Não você cair e não achar quem alevante”. E a gente tem que andar sempre de cabeça erguida.

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